domingo, 26 de abril de 2009

VINGANÇA


Da janela do apartamento, último andar de um prédio de 10, observei a luz do sol cair e as primeiras luzes iluminarem a cidade. Não sei quanto tempo permaneci ali, naquela posição incômoda, curvada, com a cabeça apoiada na grade cheia de arabescos.
A chuva começou a cair, me fazendo lembrar do noticiário que a previra e ao qual não dei ouvidos, pois o sol forte parecia desmentir qualquer previsão contrária a uma noite estrelada. Mas ela caiu e começou a embaçar as tantas luzes que eu gostava de olhar. Era hora de ir...
Os carros passavam apressados, me respingavam a lama escura dos cantos da rua, enquanto eu esperava o ônibus. Não tinha dinheiro para um táxi, mas também não tinha pressa alguma em chegar.
Pela janela do ônibus, observava as pessoas apressadas e seus multicoloridos guarda-chuvas que pareciam formar um túnel pelas calçadas. Me lembrei das tantas vezes que passei por ali, em outras situações, em outras vidas, parecia agora.
Desci no ponto final e o motorista me olhou como se se indagasse do porquê de eu não estar correndo como todos os outros. Eu seguia calma, como se não sentisse a água me encharcar completamente. Caminhava decidida pela rua estreita, até o último prédio pouco iluminado e sombrio.
Me detive na calçada em frente, olhando a janela iluminada e esperando talvez algum convite para subir, mas ninguém me sabia ali, portanto esperando o impossível.
Conhecia cada palmo daquele apartamento; vivera anos de riso fácil e paixão fulminante entre aquelas tantas paredes. Sabia cada degrau, cada arranhado na pintura, cada pingo que a torneira nunca arrumada dava por hora. Nos meus últimos dias ali, insone, me distraia contando-os pela noite adentro.
Queria fumar, mas os cigarros tinham virado lama no bolso do casaco. Masquei um chiclete encontrado entre as moedas, as únicas que me sobraram depois de meses de inatividade, entregue a fazer nada todo o tempo, imaginando como seria este encontro.
Acho que fiquei horas ali parada, olhando a janela, quando decididamente me preparei para atravessar a rua e apertar o interfone. Estava preparada agora para que ele me visse. Me sentia feia ainda, envelhecera dez anos nestes meses, não me cuidara. As unhas estavam escuras e quebradas, os dedos amarelados pelos milhares de cigarros que se queimaram entre eles, sem que os levasse aos lábios; os cabelos embranqueceram sem que eu me preocupasse em retocar a tintura. Eu me esquecera completamente, dedicando-me unicamente a este dia. Era agora...
Caminhei os poucos metros e, segura, apertei o interfone. Uma voz desconhecida me avisou que ele havia se mudado há 20 dias e não, ela não sabia pra onde havia ido, não deixara endereço.
Fiz o caminho de volta sob a chuva forte pensando que os meses debruçada naquela janela arquitetando minha vingança haviam sido inúteis, mas longe de me sentir frustrada, estava sim aliviada. O pesadelo se findara...
Na tarde seguinte, da janela do apartamento, último andar de um prédio de 10, debruçou-se uma outra mulher; a do dia anterior se fora na enxurrada da chuva...

Lucia Padilha, em um dia qualquer, de uma outra vida qualquer

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