quarta-feira, 8 de agosto de 2007

LUCIDEZ

Há dias fora tomada a decisão. Nada mais lhe prendia àquele espaço apertado onde tudo que de melhor possuía eram velhas lembranças guardadas cuidadosamente em uma pequena caixa de sapatos.
Quando a solidão lhe apertava o peito e as paredes sujas pareciam se encolher espremendo ainda mais o que ela chamava de cela, abria a pequena caixa e revivia os poucos anos de real alegria que possuíra. Hoje a própria alegria lhe incomodava. Tornara-se soturna, gostava-se assim.
Dali, levaria apenas a caixa, o resto, o minúsculo resto, ficaria para trás, não tinha qualquer valor sentimental ou monetário. Trastes inúteis, que conviveram como iguais durante tanto tempo.
Questionara-se sobre o valor de uma vida humana e percebera que já vivera o bastante para entender ganhos e, principalmente, perdas. As tivera em demasia e vidas são fugazes demais. A sua, teimosa, insistira em permanecer quando o que mais queria era findá-la, mas, covarde, não ousara.
Vidas eram estradas, lhe dizia sempre a velha avó. Algumas são arborizadas, provocam desejo de se percorrê-las sempre, enquanto outras, esburacadas e de terra batida, sufocam o viajante, que só retornará em último caso àquele caminho.
Ouvira esta frase centenas de vezes na juventude e, hoje, somente depois de passado tanto tempo, lhe entendia o significado. Tornara-se estrada esburacada, abandonada e evitada por todos. Quem lhe atravessasse os caminhos sairia avariado.
Em seus anos de estrada acabara por destruir demais, ao mesmo tempo em que via-se sendo destruída sem qualquer cuidado. Quem por ela passara, tirara-lhe o resto de beleza que habitava em sua margem, deixando, ao final de cada passagem, mais aridez e feiúra.
Hoje sentia-se estrada perdida, caminho abandonado sem possibilidade de conserto. Dela a vida se aposentara cedo demais, não lhe fazia questão.
A porta se abriu, dando passagem à mulher que trazia suas roupas. Vestiu-as com estranheza, depois de anos usando os mesmos modelos disformes, sequer se reconhecia dentro do velho jeans.
Abraçada à caixa de sapatos caminhou pelos longos corredores até a grande porta. Não olhava para os lados, não deixava nada ali; não sabia o que encontraria lá fora.
A luz do sol cegou-a nos primeiros instantes para, em seguida, ver-se envolvida no mundo de luz e cores da vida lá fora. Olhou por longos minutos a grande placa na entrada do sanatório e tentou se recordar da última vez que a vira. Não se lembrava mais, o tempo correra veloz...
Misturou-se à multidão apressada e, pela primeira vez em tantos anos, sentiu que poderia voltar a ser arborizada e lugar de paz; seu tempo de estrada perdida começava a ter fim.

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